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O corpo e a música nas manifestações afro-brasileiras: alteridade, movimento e criação

Vamos começar assim...


No ano de 2019, juntei-me com meu parceiro de cantoria e batucada, Renan Barjud, para construir uma proposta de trabalho formativo na área da educação sobre a temática afro-brasileira. Eu na pessoa híbrida de um professor da educação infantil e músico-compositor, já vinha de uma experiência como formador de educadores e educadoras na Secretaria Municipal de Educação - SME, junto à Coordenadoria Setorial de Formação – CSF, desde 2012 em Campinas, promovendo cursos sobre música na educação infantil aos profissionais desta rede. Mas em 2018 resolvi ampliar um pouco o foco dos meus trabalhos na formação continuada, promovendo um curso sobre ritmos brasileiros. Este curso foi muito inspirador e potente para mim e, acredito que para seus participantes também, pois nos possibilitou ir um pouco mais fundo na compreensão dos ritmos brasileiros, abrindo caminhos para conhecer a cultura brasileira, embarcados na canoa da música popular e futuramente sob o mar de calunga.

Parceiro Renan falando sobre calunga, no programa Música na Escola

E foi no fluxo desta compreensão, na companhia do Renan, que começamos no ano de 2020 este curso sobre o Corpo e a música nas manifestações afro-brasileiras, a fim de perceber como essas manifestações culturais originam grande parte dos ritmos, estilos e das produções musicais brasileiras. A princípio era somente isso! Pensava em aprofundar o conhecimento sobre uma perspectiva rítmica e sua relação com sua matriz cultural e nada muito mais do que isso, mas no decorrer da proposta, surpreendentemente percebia como este curso ia mais além.

Mais além em muitos sentidos, pois ao passo que navegávamos nesse mar infinito de calunga, abríamos outros horizontes conexos, percorrendo uma ligação perdida em nossa história escolar, entre o continente africano e seus povos e o continente sul-americano e seus povos. O estudo da diáspora negra, os conceitos de transculturação e mestiçagem, a percepção da cosmovisão africana e afro-brasileira, o estudo dos sambas, das capoeiras, dos cantos e orixás, percebidas no contato sinergético com as participantes do curso e as personalidades especiais que trouxemos para somar nas reflexões dos encontros virtuais, incluindo os conhecimentos sobre a capoeira e as questões étnico-raciais que o Renan trazia para o curso, fizeram-me constituir uma nova visão cultural de mim mesmo e de minha expressão musical.

Este despertar para o meu eu, filho de um Brasil histórico-profundo, para além da proposta de formação com os participantes do curso, instigou-me a aceitar e provocar o Renan para aceitar também de sermos parceiros na produção de um programa educativo-musical para a SME de Campinas, o qual seria publicizado pela TV Câmara deste município, como forma de fortalecer o vínculo educativo entre os alunos e alunas da rede pública com suas escola, nestes tempos da pandemia de covid-19. Este programa integraria uma série de outras ações com conteúdos e linguagens diferenciadas para este fim, e foi pensado e produzido totalmente por profissionais da educação deste município. Assim, aquilo que imaginávamos como uma proposta de curso se desdobrou neste programa chamado Música na escola: conexão África-Brasil, através do qual pudemos compartilhar com toda a rede de profissionais da educação de Campinas e de todo Brasil, por meio das mídias sociais, bem como com nossos alunos e nossas alunas da educação básica, os aprendizados que vínhamos construindo neste curso, junto aos seus participantes, sobre a constituição da nossa cultura musical afro brasileira.


Daniel apresentando o 3º episódio do programa Música na Escola, sobre o Samba de roda

Alteridade


O corpo e a música nas manifestações afro brasileiras: alteridade, movimento e criação, já no título tenta esclarecer para nós mesmos formadores e também para os/as participantes do curso, uma explicação do que seria estudar e refletir sobre essa temática dentro de uma perspectiva formativa para educadores e educadoras fundadas em pensamentos de Paulo Freire, Mikhail Bakhtin, Jorge Larrosa, autores estes da minha bibliografia, entre outros autores do arcabouço teórico do parceiro Renan. Com a palavra alteridade desejávamos atrair para o curso a percepção do outro não somente como um diferente, ao qual deveríamos conhecer, valorizar e respeitar, mas sim como o outro constituinte de nós mesmos, BAKHTIN (1993). No caso da cultura afro-brasileira, percebê-la como cultura expoente à formação dos brasileiros.

Ainda sobre a alteridade, seguindo o pensamento de FREIRE (1996), a proposta deste curso seguia cada vez mais para um horizonte coletivo de formação, no qual as verdades sobre estes assuntos e práticas exploradas nesta temática seriam provisórias, plurais, ao mesmo tempo que singulares. Nossa proposta foi acolher cada participante como um sujeito protagonista do saber, que junto a nós, formadores e convidados especiais que contribuíram às discussões e reflexões acerca do tema do curso, tornássemos todos e todas um só termômetro do saber frente a questão explorada. Ora mais febris e apaixonadas, ora mais cansadas, percorrendo o passar dos dias de um isolamento social jamais antes vivido por três gerações: a minha, a passada e futura de mim.


Movimento


Já com a palavra movimento, que na primeira versão do curso apareceu como ludicidade, pretendia descortinar um curso do experimentar. Como eu e o Renan não imaginávamos que 2020 seria o ano do distanciamento social, a proposta desta formação era um encontro com a roda e o fazer musical, com a prática de instrumentos de percussão, gingados e sonorização do corpo. Mas 2020 foi o ano digital do toque nas teclas e no botão do mouse. Como iríamos brincar dentro dessa condição virtual? Mas surpreendentemente brincamos! E de fato as práticas coletivas foram digitais e formaram uma onda inesperada de aprendizagens sobre o corpo e a música nas manifestações afro-brasileiras, balizadas por meio do universo virtual. Isso significa dizer que a brincadeira foi justamente essa: desbravar uma perspectiva coletiva de conhecer a história, os pulsares, rítmicas e cantares da música brasileira, desde aquilo que podemos chamar a origem do Brasil, do encontro/confronto entre as suas culturas primordiais, dentro de uma condição virtual. Pois se pensávamos que sabíamos algo com FREIRE (1996, 1971), sobre a não transmissão dos conhecimentos prontos e acabados, a horizontalidade dos saberes e entre os sujeitos que buscam este saber, não imaginávamos atuar, prematuramente, com as ferramentas e performances do cenário audiovisual. Quando nos vimos, já estávamos lá adaptando o quintal de casa para um mini estúdio de gravação; já estávamos nos relacionando com movimento de câmeras e luzes; já estávamos construindo uma escrita, um texto para ser gravado dentro de um movimento cenográfico para depois ser visto e ouvido, não lido. Práticas não experimentadas por nós, educadores e educadoras, em condições presenciais de formação.

Montagem da cena lúdica com o veículo Fobica, (primeiro trio elétrico, 1950) - quintal de casa.

 

Isso significa dizer que a energia antes gerada na roda de música por meio dos quatro sentidos, em muitas oportunidades dissipou-se apenas por dois sentidos: a visão e audição. Sim, existiram momentos individuais em que estes quatro sentidos estiveram presentes, quando, por exemplo, pudemos construir instrumentos musicais caseiros, quando nos relacionamos com os sons e movimentos do nosso corpo, com nossa voz e pesquisas individuais sobre os assuntos do curso.

Participações especiais nos encontros síncronos: Renata Oliveira, Juliana Viana, Mariana, Rafa Salustiano, Alberto Luiz, Benedita e Nati

Mas o “eu-e-o-nós” dos encontros síncronos, os momentos de diálogos e reflexões coletivas foram atravessados por meio dos sentidos que privilegiam a visão e audição. Ficamos limitados nestes sentidos, mas muito ampliados nos conteúdos e conhecimentos que levantamos junto aos participantes do curso e convidados especiais que marcaram presença nos encontros virtuais e produções de audiovisuais.


E desse movimento muito foi criado, muito foi sentido e descoberto. Antenados aos princípios do diálogo e da ausência dos cabrestos objetivos das verdades absolutas, partimos para o imprevisto deleite da fruição digital. Talvez, ora soltos nas correntes de um rio mexido pela dialética, ora centrados na pintura-registro de uma lagoa de sínteses provisórias.


Criação


Seria muito difícil para mim escrever aqui neste relato tantas aprendizagens que tivemos no calor deste curso sobre O corpo e a música nas manifestações afro-brasileiras, que se somaram a produção do programa Música na Escola: conexão África-Brasil. O alcance dos estudos e das práticas realizadas em sua totalidade me renderia um estudo acadêmico.

Como nos propõe PRADO, FRAUENDORF e CHAUTZ (2018), para realizar um inventário de pesquisa das materialidades produzidas com os participantes deste curso de 2020 me seria preciso arrumar um baú de no mínimo 50 Gigabytes. Este é o tamanho dos arquivos que se avolumam em uma de minhas “pastinhas”, no meu computador, sobre este curso e programa. Nós, enquanto formadores e cursistas, tivemos uma carga horária total de 126 horas para este curso, somada às outras 160 horas dos formadores para preparação e produção da materialidade do curso, rendeu-nos um total de 276 horas de trabalho formativo. Considero colocar estas dimensões do tempo justamente para dizer que quando nos lançamos para uma aventura de fruição mergulhados no rio da alteridade, movimento e criação, totalmente imbuídos de uma vontade de conhecer o nosso passado histórico-cultural na perspectiva da música, a noção do tempo é outra, não se finda em horas relógios.

Cris Monteiro, Marta Jardim, Mariana Costa (05 anos), Toshiro, Jair e Benê e Mestre Rafa Salustiano. Participações no programa Música na Escola: conexão África-Brasil.

 

Sem falar que neste ano de 2021, por argumentos da baixa arrecadação monetária da receita do município de Campinas, supostamente causada pela pandemia da covid-19, vivenciamos uma situação precária da Formação Continuada, situação esta que nos impulsionou para uma condição singular: realizar o trabalho formativo sem remuneração. Acredito que aceitamos essa condição por estarmos convictos sobre a importância de manter de pé uma política específica da Formação Continuada desta prefeitura, construída ao longo de anos e que tem o potencial de colocar os profissionais da educação na condição de protagonistas, quanto a produção de conhecimentos e saberes sobre as temáticas e problemáticas pedagógicas eclodidas do chão da sala de aula. Queríamos participar de uma atuação política de resistência junto aos outros formadores e as outras formadoras, a fim de sustentar esta política de formação autóctone.

Vamos terminando assim...


A partir da escrita deste relato, somente agora, estendido do ato feito e dentro desse exercício de voltar a um passado remoto, percebo a gama de realizações artístico-pedagógicas e lições pedagógicas que tive com essa projeção e realização formativa, na perspectiva coletiva e emancipatória de FREIRE (1996), apontada acima.

Eu sempre manifesto em minhas falas, com os/as colegas da educação, sobre a importância de não planejarmos ao máximo os desfechos de nossas ações educativas. O planejamento para mim deve ser o quanto mais minucioso quando posto a permitir o avanço da proposta a lugares que a própria proposta queira ir, quando estivermos todos e todas imersos nela. Não imaginei que trabalharia de forma gratuita no ano de 2020. Não pensei que iria me capacitar de forma autônoma em técnicas de gravação, produção e edição de vídeos. Não combinei de antemão com ninguém em desdobrar a proposta desse curso formativo em um programa audiovisual sobre a música na escola para a educação básica do nosso município, até que esta possibilidade apareceu. Não imaginei que inventaria com nosso coletivo a roda do fazer-musical digital e muito menos que escreveria este breve relato.

Aquarela do Pelourinho - Anildo Motta

Não pensava em dialogar com pintores artistas que nos concederam suas telas para trabalharmos os conteúdos contidos no programa “Música na Escola: conexão África-Brasil''. Não imaginei que iria desenterrar algumas de minhas composições musicais autorais de samba para produzi-las, rearranjá-las e gravá-las como possibilidade de conhecimento sobre os gêneros do samba para os alunos e alunas da rede pública de Campinas.

De fato, não tinha a perspectiva de que o curso arrebentaria suas próprias perspectivas. Mas foi tudo isso que aconteceu! A proposta foi formativa na medida em que pude descobrir e conceber como conceitos e aprendizagens nos transformaram enquanto pessoa, grupo e cultura. E quanto mais tomo ciência dessas aprendizagens mais desejo comunicá-las a quem queira ler este relato; que de tão significativas me escapam a vocês. Percebo-as também quando eu, estando em outro momento de trabalho educativo reunido com outros profissionais da educação que não os participantes deste curso, vejo produções de audiovisuais sobre a temática da música afro-brasileira que as próprias participantes do curso realizaram e publicaram em suas redes sociais, e que agora atingem outros e outras profissionais de nossa rede, em momentos outros que não aqueles próprios da Formação Continuada. Talvez elas estivessem tentando, como eu, dizer às pessoas o que aprenderam naquele curso, pois não conseguem guardar para si suas aprendizagens. Assim como sugere LARROSA (2011), penso que o valor de nossas aprendizagens não repousa muito em nelas mesmas, mas no próprio ato de contá-las para alguém. Me parece que quanto mais me coloco a narrar o que se passou comigo, quando estive presente junto aos participantes deste curso de formação sobre as manifestações musicais afro-brasileiras, mais tenho consciência dos conhecimentos, lições e saberes apreendidos daquele momento que não se finda com término do curso, mas seguem na tentativa de me constituir como um ser mais plural e acolhedor no mundo.

Leituras aprofundadas


BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão Pereira, São Paulo, Martins Fontes, 1997.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. – São Paulo: Paz e Terra, 1996 (coleção Leitura).

______. Extensão ou comunicação? Rio de janeiro: Paz e Terra, 1971.

LARROSA, J. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. 4ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.


Confira aqui os 3 episódios da Série: - Música na escola: conexão África-Brasil. E uma canção que compusémos e gravamos juntos às participantes do curso O corpo e a música nas manifestações afro-brasileiras: alteridade, movimento e criação


  • 1º Episódio: Samba Paulista


  • 2º Episódio: Samba Reggae

  • 3º Episódio: Samba de Roda


IEMANJÁ - Canção autoral do grupo de formação / 2020


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